Poesia
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A Divina Comédia (Inferno — Canto VI)
por Dante Alighieri, tradução de José Pedro Xavier Pinheiro
Tradução de José Pedro Xavier Pinheiro


No terceiro círculo estão os gulosos, cuja pena consiste em ficarem prostrados debaixo de uma forte chuva de granizo, água e neve, e ser dilacerados pelas unhas e dentes de Cérbero. Entre os condenados Dante encontra Ciacco, florentino, que fala com Dante acerca das discórdias da pátria comum.

Do soçobro tornando a aflita mente,
Que da cópia infelice contristado
Havia tanto o padecer pungente,

Achei-me novamente circundado
De outros míseros, de outras amarguras,
Que via em toda parte, ao longe e ao lado.

Sou no terceiro círculo, onde escuras,
Eternas chuvas, gélidas caíam,
Pesadas, sempre as mesmas, sempre impuras.

Saraiva grossa, neve, água desciam
Desse ar pelas alturas tenebrosas:
No chão caindo infeto odor faziam.

Latia com três fauces temerosas,
Cérbero, o cão multíface e furente,[1]
Contra as turbas submersas, criminosas.

Sangüíneos olhos tem, o ventre ingente,
Barba esquálida, as mãos de unhas armadas;
Rasga, esfola, atassalha a triste gente.

Uivam à chuva, quais lebréus, coitados!
Mudam de lado sem cessar, buscando
Defensa e alívio, as almas condenadas.

Cérbero, o grão réptil, nos divisando
Os dentes mostra, as bocas escancara,
De sanha os membros todos convulsando.

Meu Guia, as mãos abrindo, se prepara:
Enche-as de terra, e às guelas devorantes
Lança da fera essa iguaria amara.

Qual mastim, que em latidos retumbantes
Brada de fome, e, apenas a sacia
Devorando, aquieta as iras de antes:

Tal, aplacando a fúria, parecia
O demônio que as almas atordoa:
Surdez de ouvi-lo o mal lhes pouparia.

O solo, onde pisamos, se povoa
Das sombras, que essas chuvas derrubavam:
Forma e aparência tinham de pessoa.

Sobre a terra estendidas, a alastravam;
Mas uma surge, súbito sentada,
Aos passos que adiante nos levavam.

“Tu” — disse — “que és guiado pela estrada
Do inferno, vê se acaso me conheces:
Nasceste antes de eu ser nesta morada”.

Tornei-lhe: “A grande angústia em que padeces,
Tua feição lembrar-me não consente:
Inota face aos olhos me ofereces.

“Quem és que em tal lugar tão duramente
Pelos pecados teus stás dando a pena?
Se há maior, nenhuma é tão displicente”. —

— “Em tua pátria” — responde — “que tão plena
Já é de inveja, que transborda o saco,
Existência gozei leda e serena.

“Vós, Florentinos, me chamastes Ciacco:[2]
Por ter da gula a intemperança amado,
À chuva peno enregelado e fraco.

“Mas sou nesta miséria acompanhado;
Pois quantos aqui estão de igual castigo
Punidos foram por igual pecado”. —

— “Com dor sincera” — lhe falei — “te digo
Que esse tormento o peito me enternece.
Saberás se os partidos a perigo

“Florença levarão, que já padece?
Algum justo ali vive? A que motivo
A cizânia se deve, que ali cresce?” —

— “Virão a sangue após ódio excessivo;
E o partido selvagem triunfante[3]
O outro lançará feroz e esquivo.

“Três sóis passados, chegará o instante
De ser pelos vencidos suplantado,
Que esforça alguém, que aos dois faz bom semblante.

“Por algum tempo o vencedor ousado
A cerviz calcará do outro partido
Que se aflige oprimido e envergonhado.

“Justos há dois: ninguém lhes presta ouvido.
Três brandões — Avareza, Orgulho, Inveja,
Incêndio têm nos peitos acendido”. —

Assim a flébil narração boqueja.
Eu lhe respondo: “A informação completa;
Favor farás a quem te ouvir almeja.

“Farinata e Tegghiaio, de alma reta,[4]
Jacopo Rusticucci, Mosca, Arrigo,
E os mais que da virtude o amor inquieta,

“Onde estão? Diz e franco sê comigo!
Saber qual seja anelo a sorte sua:
Stão no céu, ou no inferno têm castigo?” —

“Entre os que sofrem punição mais crua
Estão, por seus maus feitos, lá no fundo:
Se lá desces, verão a face tua.

“Quando tomares ao saudoso mundo,
De mim aviva aos meus o pensamento...
Não mais: volto ao silêncio meu profundo” —

Os olhos que não tinham movimento,
Torcendo fita em mim; já curva a frente
E cai entre os mais cegos num momento.

E disse, o Vate: “Em sono permanente
Hão de aguardar a angélica chamada,
Quando os julgar severo o Onipotente.

“Cad’um, a triste sepultura achada,
Ressurgindo na carne e na figura,
Voz ouvirá pra sempre reboada”. —

A passo lento assim pela mistura
Das sombras e da chuva caminhando,
Falávamos da vida, que é futura.

— “Mestre” — lhe disse então — “irá medrando
Depois da grã sentença esse tormento?
Igual pungir terá? Será mais brando?” —

— “Do teu saber recorre ao documento:
Verás que ao ente quando mais se eleva
Do bem, da dor mais cresce o sentimento.

“Bem que esta raça condenada à treva
Jamais da perfeição se eleve à altura
Ressurgindo, há de ter pena mais seva”. —

Perlustramos do círculo a cintura,
De cousas praticando que não digo,
Té descer um degrau na estância escura.

Ali’stá Pluto, o nosso grande imigo.

Notas[]

  1. Cérbero, monstro, meio cão, meio dragão, com três cabeças, que, segundo a mitologia antiga, estava à guarda do inferno. [N. T.]
  2. Ciacco, parasita florentino. [N. T.]
  3. O partido selvagem, os Brancos. [N. T.]
  4. Farinata etc., nomes de florentinos ilustres. [N. T.]

en:The Divine Comedy/Inferno/Canto VI es:La Divina Comedia: El Infierno: Canto VI fr:La Divine Comédie : L’Enfer - Chant VI it:Divina Commedia/Inferno/Canto VI

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