Poesia
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A Morte de Tapir
por Olavo Bilac


I[]

Uma coluna de ouro e púrpuras ondeantes
Subia o firmamento. Acesos véus, radiantes
Rubras nuvens, do sol à viva luz, do poente
Vinham, soltas, correr o espaço resplendente.
Foi a essa hora, - às mãos o arco possante, à cinta
Do leve enduape a tanga em várias cores tinta,
A aiucara ao pescoço, o canitar à testa, -
- Que Tapir penetrou o seio da floresta.
Era de vê-lo assim, com o vulto enorme ao peso
Dos anos acurvado, o olhar faiscando aceso,
Firme o passo apesar da extrema idade, e forte.
Ninguém, como ele, em face, altivo e hercúleo, a morte
Tantas vezes fitou... Ninguém, como ele, o braço
Erguendo, a lança aguda atirava no espaço.
Quanta vez, do uapi ao rouco troar, ligeiro
Como a corça, ao rugir do estrépito guerreiro
O tacape brutal rodando no ar, terrível,
Incólume, vibrando os golpes, - insensível
Às preces, ao clamor dos gritos, surdo ao pranto
Das vitimas, - passou, como um tufão, o espanto,
O extermínio, o terror atras de si deixando!
Quanta vez do inimigo o embate rechaçando
Por si só, foi seu peito uma muralha erguida,
Em que vinha bater e quebrar-se vencida
De uma tribo contrária a onda medonha e bruta!
Onde um pulso que, tal como seu pulso, à luta
Costumado, um por um, ao chão arremessasse
Dez combatentes? Onde um arco, que atirasse
Mais célere, a zunir, a fina flecha ervada?
Quanta vez, a vagar na floresta cerrada,
Peito a peito lutou com as fulvas onças bravas,
E as onças a seus pés tombaram, como escravas,
Nadando em sangue quente, e, em roda, o eco infinite
Despertando, ao morrer, com o derradeiro grito!..
Quanta vez! E hoje velho, hoje abatido!

II[]

E o dia
Entre os sangüíneos tons do ocaso decaía...
E era tudo em silêncio, adormecido e quedo...
De súbito um tremor correu todo o arvoredo:
E o que há pouco era calma, agora é movimento,
Treme, agita-se, acorda, e se lastima... O vento
Fala: 'Tapir! Tapir! é finda a tua raça!"
E em tudo a mesma voz misteriosa passa;
As árvores e o chão despertam, repetindo:
'Tapir! Tapir! Tapir! O teu poder é findo!"

E, a essa hora, ao fulgor do derradeiro raio
Do sol, que o disco de ouro, em lúcido desmaio,
Quase no extremo céu de todo mergulhava,
Aquela estranha voz pela floresta ecoava
Num confuso rumor entrecortado, insano...
Como que em cada tronco havia um peito humano
Que se queixava... E o velho, úmido o olhar, seguia.
E, a cada passo assim dado na mata, via
Surgir de cada canto uma lembrança... Fora
Desta imensa ramada à sombra protetora
Que um dia repousara... Além, a arvore anosa,
Em cujos galhos, no ar erguidos, a formosa,
A doce Juraci a rede suspendera,
- A rede que, com as mãos finíssimas, tecera
Para ele, seu senhor e seu guerreiro amado!
Ali... - Contai-o vós, contai-o, embalsamado
Retiro, ninhos no ar suspensos, aves, flores!...
Contai-o, o poema ideal dos primeiros amores,
Os corpos um ao outro estreitamente unidos,
Os abraços sem conta, os beijos, os gemidos,
E o rumor do noivado, estremecendo a mata,
Sob o plácido olhar das estrelas de prata...

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Juraci! Juraci! virgem morena e pura!
Tu também! tu também desceste à sepultura!...

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III[]

E Tapir caminhava... Ante ele agora um rio
Corria; e a água também, ao crebro
Da corrente, a rolar, gemia ansiosa e clara:
- "Tapir! Tapir! Tapir! Que é da veloz igara,
Que é dos remos dos teus? Não mais as redes finas
Vêm na pesca sondar-me as águas cristalinas.
Ai! não mais beijarei os corpos luxuriantes,
Os curvos seios nus, as formas palpitantes
Das morenas gentis de tua tribo extinta!
Não mais! Depois dos teus de brônzea pele tinta
Com os sucos do urucu, de pele branca vieram
Outros, que a ti e aos teus nas selvas sucederam.
Ai! Tapir! ai! Tapir! A tua raça é morta! -"
E o índio, trêmulo, ouvindo aquilo tudo, absorta
A alma em cismas, seguiu curvada a fronte ao peito.
Agora da floresta o chão não mais direito
E plano se estendia: era um declive; e quando
Pelo tortuoso anfracto, a custo, caminhando
Ao crepúsculo, pôde o velho, passo a passo,
A montanha alcançar, viu que a noite no espaço
Vinha a negra legião das sombras espargindo...
Crescia a treva. A medo, entre as nuvens luzindo,
No alto, a primeira estrela o cálix de ouro abria...
Outra após cintilou na esfera imensa e fria...
Outras vieram... e, em breve, o céu, de lado a lado,
Foi como um cofre real de pérolas coalhado.

IV[]

Então, Tapir, de pé, no arco apoiado, a fronte
Ergueu, e o olhar passeou no infinito horizonte:
Acima o abismo, abaixo o abismo, o abismo adiante.
E, clara, no negror da noite, viu, distante,
Alvejando no vale a taba do estrangeiro...
Tudo extinto!... era ele o último guerreiro!
E do vale, do céu, do rio, da montanha,
De tudo que o cercava, ao mesmo tempo, estranha,
Rouca, extrema, rompeu a mesma voz: - "É finda
Toda a raça dos teus: só tu és vivo ainda!
Tapir! Tapir! Tapir! morre também com ela!
Já não fala Tupã no ulular da procela...
As batalhas de outrora, os arcos e os tacapes,
As florestas sem fim de flechas e acanguapes,
Tudo passou! Não mais a fera inúbia à boca
Dos guerreiros, Tapir, soa medonha e rouca.

É mudo o maracá. A tribo exterminada
Dorme agora feliz na Montanha Sagrada...
Nem uma rede o vento entre os galhos agita!
Não mais o vivo som de alegre dança, e a grita
Dos pajés, ao luar, por baixo das folhagens,
Rompe os ares... Não mais! As poracés selvagens,
As guerras e os festins, tudo passou! É finda
Toda a raça dos teus... Só tu és vivo ainda! -"

V CINCOOOOOOOOOOOOOO[]

E num longo soluço a voz misteriosa
Expirou... Caminhava a noite silenciosa,
E era tranqüilo o céu; era tranqüila em roda,
Imersa em plúmbeo sono, a natureza toda.

E, no tope do monte, era de ver erguido
O vulto de Tapir... Inesperado, um ruído
Seco, surdo soou, e o corpo do guerreiro
De súbito rolou pelo despenhadeiro...
E o silêncio outra vez caiu.
Nesse momento,
Apontava o luar no curvo firmamento.

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