Poesia
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Insônia
por Augusto dos Anjos


Quarto Minguante! E, embora a lua o aclare,

Este Engenho Pau d'Arco é muito triste...

Nos engenhos da várzea não existe

Talvez um outro que se lhe equipare!


Do observatório em que eu estou situado

A lua magra, quando a noite cresce,

Vista, através do vidro azul, parece

Um paralelepípedo quebrado!


O sono esmaga o encéfalo do povo.

Tenho 300 quilos no epigastro...

Dói-me a cabeça. Agora a cara do astro

Lembra a metade de uma casca de ovo.


Diabo! Não ser mais tempo de milagre!

Para que esta opressão desapareça

Vou amarrar um pano na cabeça

Molhar a minha fronte com vinagre.


Aumentam-se-me então os grandes medos.

O hemisfério lunar se ergue e se abaixa

Num desenvolvimento de borracha,

Variando à ação mecânica dos dedos!


Vai-me crescendo a aberração do sonho.

Morde-me os nervos o desejo doudo

De dissolver-me, de enterrar-me todo

Naquele semicírculo medonho!


Mas tudo isto é ilusão de minha parte!

Quem sabe se não é porque não saio

Desde que, 6.ª-feira, 3 de maio,

Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?!


A lâmpada a estirar línguas vermelhas

Lambe o ar. No bruto horror que me arrebata,

Como um degenerado psicopata

Eis-me a contar o número das telhas!


- Uma, duas, três, quatro... E aos tombos, tonta

Sinto a cabeça e a conta perco; e, em suma,

A conta recomeço, em ânsias: - Uma...

Mas novamente eis-me a perder a conta!


Sucede a uma tontura outra tontura.

- Estarei morto?! E a esta pergunta estranha

Responde a Vida - aquela grande aranha

Que anda tecendo a minha desventura! -


A luz do quarto diminuindo o brilho

Segue todas as fases de um eclipse...

Começo a ver coisas de Apocalipse

No triângulo escaleno do ladrilho!


Deito-me enfim. Ponho o chapéu num gancho.

Cinco lençóis balançam numa corda,

Mas aquilo mortalhas me recorda,

E o amontoamento dos lençóis desmancho.


Vêm-me á imaginação sonhos dementes.

Acho-me, por exemplo, numa festa...

Tomba uma torre sobre a minha testa,

Caem-me de uma só vez todos os dentes!


Então dois ossos roídos me assombraram...

- "Por ventura haverá quem queira roer-nos?!

Os vermes já não querem mais comer-nos

E os formigueiros lá nos desprezaram".


Figuras espectrais de bocas tronchas

Tornam-me o pesadelo duradouro...

Choro e quero beber a água do choro

Com as mãos dispostas á feição de conchas.


Tal urna planta aquática submersa,

Antegozando as últimas delicias

Mergulho as mãos - vis raízes adventícias -

No algodão quente de um tapete persa.


Por muito tempo rolo no tapete,

Súbito me ergo. A lua é morta. Um frio

Cai sobre o meu estômago vazio

Como se fosse um copo de sorvete!


A alta frialdade me insensibiliza;

O suor me ensopa. Meu tormento é infindo...

Minha família ainda está dormindo

E eu não posso pedir outra camisa!


Abro a janela. Elevam-se fumaças

Do engenho enorme. A luz fulge abundante

E em vez do sepulcral Quarto Minguante

Vi que era o sol batendo nas vidraças.


Pelos respiratórios tênues tubos

Dos poros vegetais, no ato da entrega

Do mato verde, a terra resfolega

Estrumada, feliz, cheia de adubos.


Côncavo, o céu, radiante e estriado, observa

A universal criação. Broncos e feios,

Vários reptis cortam os campos, cheios

Dos tenros tinhorões e da úmida erva.


Babujada por baixos beiços brutos,

No húmus feraz, hierática, se ostenta

A monarquia da árvore opulenta

Que dá aos homens o óbolo dos frutos.


De mim diverso, rígido e de rastos

Com a solidez do tegumento sujo

Sulca, em diâmetro, o solo um caramujo

Naturalmente pelos mata-pastos.


Entretanto, passei o dia inquieto,

A ouvir, nestes bucólicos retiros

Toda a salva fatal de 21 tiros

Que festejou os funerais de Hamleto!


Ah! Minha ruína é pior do que a de Tebas!

Quisera ser, numa última cobiça,

A fatia esponjosa de carniça

Que os corvos comem sobre as jurubebas!


Porque, longe do pão com que me nutres

Nesta hora, oh! Vida em que a sofrer me exortas

Eu estaria como as bestas mortas

Pendurado no bico dos abutres!

(Eu, 55)

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